A entrada em 2017 também pode ser encarada pela ótica de uma busca
desesperada por afirmação de alguma rota de coerência e credibilidade
do governo Temer. Afinal, o passar do tempo veio desconstruindo,
pouco a pouco, toda aquela falsa expectativa criada em torno das vantagens
do “golpeachment”. O canto de sereia dos “putschistas” assegurava que,
uma vez consumada a retirada de Dilma do Palácio do Planalto, tudo
seria resolvido e o Brasil entraria em um verdadeiro céu de brigadeiro.
A realidade, porém, insistiu em desmentir os vendedores de tais falsas
ilusões. Os equívocos do diagnóstico a respeito da situação econômica
e social não foram abandonados em relação à leitura equipe anterior,
quando o chefe da turma da economia era Joaquim Levy. Muito pelo
contrário! A entrada em campo da dupla Meirelles e Goldfajn recoloca
o financismo no centro de decisões, ainda com mais poder de fogo.
Assim, a manutenção da estratégia do austericídio se vê reforçada,
com elevação sensível dos níveis das maldades a serem praticadas contra
a maioria da população brasileira.
Já virou jargão a afirmação de que governar é fazer escolhas e definir
prioridades. Pois a imagem cabe como uma luva para a compreensão
dos rumos adotados por Temer, desde que ele encabeçou o
movimento pela deposição ilegítima da presidenta eleita. Além de optar
pela via da inconstitucionalidade do golpe travestido de ares institucionais,
Temer escolheu o campo do conservadorismo ortodoxo no domínio da
economia. É bem verdade que tal preferência não revelou nada de muito
surpreendente, mas ele resolveu aprofundar a aliança com o núcleo duro
do sistema financeiro e incorporou para si, de forma definitiva, a
narrativa da inevitabilidade do ajuste recessivo.
Austericídio: cortes no orçamento e juros nas alturas.
A leitura da turma do neoliberalismo tupiniquim a respeito da
dinâmica econômica permanecia monocórdica. A recomendação para
superar as dificuldades se resumia, como ainda se reduz, ao binômio
do corte das despesas orçamentárias e da manutenção de uma política
monetária arrochada. Às favas com as críticas que apontavam para os
graves problemas sociais derivados de tal estratégia, além do desprezo
pelos economistas que alertávamos para a própria ineficiência de
tais medidas para resolver o que se pretendia. A trágica combinação de
política fiscal restritiva com taxas de juros estratosféricas provocaria uma
mistura explosiva para o conjunto da sociedade.
Alçado ilegitimamente à condição de chefe de governo, Temer fez as suas
escolhas. A radicalização da trilha austericida veio acompanhada de
contingenciamentos mais duros de verbas públicas, de taxas de juros
reais e nominais inimagináveis, de desmonte de estruturas essenciais da
administração pública, entre tantas outras manifestações dos representantes
da “nova equipe técnica e competente” que chegava à Esplanada dos Ministérios.
Enfim, nem tão eficiente nem tão nova assim, uma vez que os oportunistas de
todos os matizes rapidamente se converteram ao novo credo e se acomodaram
aos comandos da nova direção.
O vice-presidente eleito em 2014 estabeleceu suas prioridades. E assim foram
considerados essenciais seus objetivos de: i) promover o congelamento das
rubricas orçamentárias pelo horizonte de 20 anos da vida nacional; e ii) empurrar
goela abaixo da sociedade uma reforma previdenciária redutora de direitos de
trabalhadores na ativa e de aposentados. Levando-se em consideração a insanidade
da avaliação subjacente a tal aventura criminosa, nada mais coerente com um
diagnóstico que tem seus olhos focados única e exclusivamente na necessidade
de promover superávit primário a qualquer custo.
Ocorre que o discurso é mentiroso e o argumento é falacioso.
Não é verdade que a estrutura da previdência social seja estruturalmente
desequilibrada e que sua manutenção levará à quebradeira generalizada do
Estado brasileiro. A situação das contas do Regime Geral da Previdência
Social (RGPS) passa por um momento de maior dificuldade em função de
problemas das receitas do INSS e não por um descontrole insuperável. Os
últimos governos promoveram um festival de desonerações das receitas
previdenciárias a serem recolhidas pelas empresas. Por outro lado, a
redução do ritmo de atividade econômica e a recessão promoveram
também uma drástica redução das receitas do RGPS. O aumento do desemprego
tem provocado a retirada de milhões de trabalhadores do mercado de
trabalho, com evidentes impactos também sobre a previdência.
Previdência não é estruturalmente desequilibrada.
Frente a esse quadro é compreensível que haja um descompasso entre
entradas e saídas de recursos do sistema. As despesas se mantêm, uma
vez que as pessoas continuam aposentadas e outras passam a se aposentar.
As receitas diminuem por conta da estagnação provocada pelo austericídio.
E daí os jornalões escancaram as manchetes do suposto “rombo enorme”
da previdência. Trata-se do mais puro e conhecido alarmismo irresponsável.
Desde 2015 as contas apresentam problemas, mas nada comparável a um
descompasso estrutural. Se a economia voltar a crescer, as receitas devem
retornar a patamares compatíveis às despesas.
E tudo isso sem mencionar os problemas associados ao contingente da
previdência rural e ao abandono deliberado do conceito de seguridade
social, tal como definido na própria Constituição. A parte mais
relevante do chamado “déficit previdenciário” tem origem nos benefícios
concedidos aos trabalhadores do campo, que só foram incorporados ao
sistema em 1988 e não apresentam histórico de contribuição. Ao contrário
do que afirmam os especialistas em planilha contábil, a decisão dos
constituintes foi o reconhecimento de uma profunda dívida da sociedade
brasileira para com que esse setor, que até então sempre fora marginalizado
e impedido de participar do sistema previdenciário. Já o tripé
“saúde-previdência-assistência” que a Constituição define como seguridade
social tem suas fontes de receita asseguradas e apresenta um orçamento
formalmente equilibrado.
Não é verdade que a única maneira de evitar o descontrole da inflação seja
pela manutenção da SELIC em níveis tão elevados que fazem do Brasil o
campeão mundial da taxa de juros há anos, sem interrupção. Exatamente
pelo fato de a economia não ser uma ciência exata, existem várias interpretações
para o mesmo fenômeno e mais de uma recomendação de política econômica.
Tanto isso é verdade que até um dos principais economistas do campo da ortodoxia,
André Lara Rezende, acaba de tornar pública uma espécie de “mea culpa” a esse
respeito. De acordo com ele, a política que mantém a taxa de juros alta não apenas
é ineficaz para reduzir preços, como em alguns casos pode até provocar inflação.
Ainda que meio capenga, em sua auto crítica pública, o banqueiro afirma que esse
tem sido o caso brasileiro (nem tão) recente. Em suas palavras: “Ou seja, o
juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação
alta.”Em poucas palavras, ele reconhece o equívoco cometido ao longo dos últimos
vinte anos. Resta saber quem vai pagar a conta de tanta irresponsabilidade cometida
contra a grande maioria da sociedade.
Por que não uma Reforma da Política Monetária?
Ora, se o governo estabeleceu mesmo como objetivo o controle de gastos públicos,
sua opção em alcançá-lo pela previdência social revela uma prioridade
bastante questionável. Senão, vejamos. Os números oferecidos pelas
próprias instituições oficiais encarregadas pela política econômica são cristalinos.
Ao contrário do que nos faz crer o discurso do financismo, não é a rubrica
previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na
contabilidade da União. O item do Orçamento federal que oferece o maior
rombo é a conta de pagamento de juros. Sim, de acordo com informações
do próprio BC, ao longo de 2016 as despesas com esse quesito foram de
R$ 407 bilhões, algo que representa em torno de 7% do PIB. Houve momentos,
ao longo do ano passado, em que o total acumulado de 12 meses dessa conta
chegou a atingir igualmente vergonhosos R$ 540 bilhões. Ainda que sejam
gastos da órbita federal, o governo faz cara de paisagem e ignora o assunto
quando alguém ousa colocar o tema na mesa. Como não existe nenhuma receita
de tributo correspondente a tal atividade, o impacto das despesas é 100%
comprometedor do equilíbrio fiscal. No entanto, como outra “prioridade
do governo” é a manutenção do superávit primário, não há nenhuma medida
para contingenciar ou reduzir os gastos com a política monetária. Afinal,
como o povo da finança enche a boca para dizer, os contratos do mercado
são sagrados e imexíveis.
Assim, como a intenção é encontrar contas passíveis de redução na estrutura
orçamentária, os especialistas dos cortes não hesitam em apontar o dedo para
a previdência social. Afinal, a conta é mesmo expressiva: foram R$ 516 bi
em 2016. No entanto, o sistema prevê receitas específicas para sua manutenção
. Assim, ainda que fiquemos submissos aos cálculos polêmicos e questionáveis
do Ministério da Fazenda, o déficit apresentado pelo sistema no ano passado
teria sido de R$ 108 bi. A disparidade entre ambas as contas é evidente!
Mas o governo esqueceu juros e optou pela previdência.
Assim como a chamada “PEC do Fim do Mundo” silenciou sobre congelar
os gastos financeiros ao longo dos próximos 20 anos, aqui também o
financismo passa incólume - graças ao compadrio generoso dos responsáveis
pela equipe econômica. Pouco importa o caráter redistribuidor de renda
dos benefícios do INSS. Pouco importa que mais de 40% desse volume de
aposentadorias e pensões retorne aos cofres públicos sob a forma de tributos
e impostos. Pouco importa que sejam mais de 30 milhões de indivíduos
beneficiados por esse tipo de remuneração. A prioridade é a Reforma da
Previdência, com o intuito de retirar direitos para reduzir as despesas
previdenciárias. E ponto final.
Juros: R$ 4 trilhões em 2 décadas.
Por outro lado, a exemplo do que vem sendo praticado há décadas, a
prioridade é não mexer com o superávit primário. Assim, não
interessa promover nenhuma “Reforma da Política Monetária”
– esta sim poderia oferecer algum alívio significativo nos gastos federais.
Nesse caso, os dados da Secretaria do Tesouro Nacional são realmente
impressionantes. Ao longo de 2 décadas entre 1997 e 2016, por exemplo,
o Estado brasileiro registrou um déficit acumulado de R$ 4,1 trilhões em
sua conta de juros. Isso significa que foi esse o valor transferido do
orçamento público para o sistema financeiro, a título de pagamento
dos juros da dívida pública. Todos sabemos que são recursos dirigidos a
uma pequena parcela da população e sobre os quais incide uma porcentagem
muito reduzida de impostos, em razão da conhecida regressividade de nossa
estrutura tributária.
Previdência social ou juros? Temer fez sua escolha e definiu sua prioridade.
Cabe à sociedade organizada demonstrar sua discordância e pressionar
o Congresso Nacional para evitar a aprovação de tal desastre anunciado.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10
e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira
do governo federal
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Previdencia-Social-
ou-Juros-/7/37670