quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

08/02/2017 11:54 - Copyleft

Previdência Social ou Juros?

Ao contrário do que o financismo nos faz crer, não é a rubrica previdenciária
aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União.


Paulo Kliass*
A entrada em 2017 também pode ser encarada pela ótica de uma busca
desesperada por afirmação de alguma rota de coerência e credibilidade
do governo Temer. Afinal, o passar do tempo veio desconstruindo,
pouco a pouco, toda aquela falsa expectativa criada em torno das vantagens
do “golpeachment”. O canto de sereia dos “putschistas” assegurava que,
uma vez consumada a retirada de Dilma do Palácio do Planalto, tudo
seria resolvido e o Brasil entraria em um verdadeiro céu de brigadeiro.

A realidade, porém, insistiu em desmentir os vendedores de tais falsas
 ilusões. Os equívocos do diagnóstico a respeito da situação econômica
 e social não foram abandonados em relação à leitura equipe anterior, 
quando o chefe da turma da economia era Joaquim Levy. Muito pelo 
contrário! A entrada em campo da dupla Meirelles e Goldfajn recoloca 
o financismo no centro de decisões, ainda com mais poder de fogo. 
Assim, a manutenção da estratégia do austericídio se vê reforçada, 
com elevação sensível dos níveis das maldades a serem praticadas contra 
a maioria da população brasileira.

Já virou jargão a afirmação de que governar é fazer escolhas e definir
 prioridades. Pois a imagem cabe como uma luva para a compreensão
 dos rumos adotados por Temer, desde que ele encabeçou o 
movimento pela deposição ilegítima da presidenta eleita. Além de optar 
pela via da inconstitucionalidade do golpe travestido de ares institucionais,
 Temer escolheu o campo do conservadorismo ortodoxo no domínio da
 economia. É bem verdade que tal preferência não revelou nada de muito
 surpreendente, mas ele resolveu aprofundar a aliança com o núcleo duro
 do sistema financeiro e incorporou para si, de forma definitiva, a 
narrativa da inevitabilidade do ajuste recessivo.

Austericídio: cortes no orçamento e juros nas alturas.

A leitura da turma do neoliberalismo tupiniquim a respeito da 
dinâmica econômica permanecia monocórdica. A recomendação para 
superar as dificuldades se resumia, como ainda se reduz, ao binômio 
do corte das despesas orçamentárias e da manutenção de uma política 
monetária arrochada. Às favas com as críticas que apontavam para os 
graves problemas sociais derivados de tal estratégia, além do desprezo
 pelos economistas que alertávamos para a própria ineficiência de 
tais medidas para resolver o que se pretendia. A trágica combinação de 
política fiscal restritiva com taxas de juros estratosféricas provocaria uma
 mistura explosiva para o conjunto da sociedade.

Alçado ilegitimamente à condição de chefe de governo, Temer fez as suas
 escolhas. A radicalização da trilha austericida veio acompanhada de 
contingenciamentos mais duros de verbas públicas, de taxas de juros 
reais e nominais inimagináveis, de desmonte de estruturas essenciais da
 administração pública, entre tantas outras manifestações dos representantes
 da “nova equipe técnica e competente” que chegava à Esplanada dos Ministérios.
 Enfim, nem tão eficiente nem tão nova assim, uma vez que os oportunistas de
 todos os matizes rapidamente se converteram ao novo credo e se acomodaram
 aos comandos da nova direção.

O vice-presidente eleito em 2014 estabeleceu suas prioridades. E assim foram 
considerados essenciais seus objetivos de: i) promover o congelamento das
 rubricas orçamentárias pelo horizonte de 20 anos da vida nacional; e ii) empurrar
 goela abaixo da sociedade uma reforma previdenciária redutora de direitos de
 trabalhadores na ativa e de aposentados. Levando-se em consideração a insanidade
 da avaliação subjacente a tal aventura criminosa, nada mais coerente com um
 diagnóstico que tem seus olhos focados única e exclusivamente na necessidade
 de promover superávit primário a qualquer custo.

Ocorre que o discurso é mentiroso e o argumento é falacioso. 

Não é verdade que a estrutura da previdência social seja estruturalmente
 desequilibrada e que sua manutenção levará à quebradeira generalizada do
 Estado brasileiro. A situação das contas do Regime Geral da Previdência 
Social (RGPS) passa por um momento de maior dificuldade em função de 
problemas das receitas do INSS e não por um descontrole insuperável. Os 
últimos governos promoveram um festival de desonerações das receitas 
previdenciárias a serem recolhidas pelas empresas. Por outro lado, a 
redução do ritmo de atividade econômica e a recessão promoveram 
também uma drástica redução das receitas do RGPS. O aumento do desemprego
 tem provocado a retirada de milhões de trabalhadores do mercado de 
trabalho, com evidentes impactos também sobre a previdência.

Previdência não é estruturalmente desequilibrada.

Frente a esse quadro é compreensível que haja um descompasso entre 
entradas e saídas de recursos do sistema. As despesas se mantêm, uma
 vez que as pessoas continuam aposentadas e outras passam a se aposentar. 
As receitas diminuem por conta da estagnação provocada pelo austericídio.
 E daí os jornalões escancaram as manchetes do suposto “rombo enorme” 
da previdência. Trata-se do mais puro e conhecido alarmismo irresponsável.
 Desde 2015 as contas apresentam problemas, mas nada comparável a um
 descompasso estrutural. Se a economia voltar a crescer, as receitas devem 
retornar a patamares compatíveis às despesas.

E tudo isso sem mencionar os problemas associados ao contingente da
 previdência rural e ao abandono deliberado do conceito de seguridade 
social, tal como definido na própria Constituição. A parte mais
 relevante do chamado “déficit previdenciário” tem origem nos benefícios
 concedidos aos trabalhadores do campo, que só foram incorporados ao 
sistema em 1988 e não apresentam histórico de contribuição. Ao contrário
 do que afirmam os especialistas em planilha contábil, a decisão dos 
constituintes foi o reconhecimento de uma profunda dívida da sociedade 
brasileira para com que esse setor, que até então sempre fora marginalizado
 e impedido de participar do sistema previdenciário. Já o tripé 
“saúde-previdência-assistência” que a Constituição define como seguridade
 social tem suas fontes de receita asseguradas e apresenta um orçamento 
formalmente equilibrado.

Não é verdade que a única maneira de evitar o descontrole da inflação seja
 pela manutenção da SELIC em níveis tão elevados que fazem do Brasil o
 campeão mundial da taxa de juros há anos, sem interrupção. Exatamente 
pelo fato de a economia não ser uma ciência exata, existem várias interpretações
 para o mesmo fenômeno e mais de uma recomendação de política econômica. 
Tanto isso é verdade que até um dos principais economistas do campo da ortodoxia,
 André Lara Rezende, acaba de tornar pública uma espécie de “mea culpa” a esse
 respeito. De acordo com ele, a política que mantém a taxa de juros alta não apenas
 é ineficaz para reduzir preços, como em alguns casos pode até provocar inflação. 
Ainda que meio capenga, em sua auto crítica pública, o banqueiro afirma que esse
 tem sido o caso brasileiro (nem tão) recente. Em suas palavras: “Ou seja, o 
juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação
 alta.”Em poucas palavras, ele reconhece o equívoco cometido ao longo dos últimos
 vinte anos. Resta saber quem vai pagar a conta de tanta irresponsabilidade cometida
 contra a grande maioria da sociedade.

Por que não uma Reforma da Política Monetária?

Ora, se o governo estabeleceu mesmo como objetivo o controle de gastos públicos,
 sua opção em alcançá-lo pela previdência social revela uma prioridade 
bastante questionável. Senão, vejamos. Os números oferecidos pelas 
próprias instituições oficiais encarregadas pela política econômica são cristalinos.

Ao contrário do que nos faz crer o discurso do financismo, não é a rubrica
 previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na 
contabilidade da União. O item do Orçamento federal que oferece o maior
 rombo é a conta de pagamento de juros. Sim, de acordo com informações 
do próprio BC, ao longo de 2016 as despesas com esse quesito foram de 
R$ 407 bilhões, algo que representa em torno de 7% do PIB. Houve momentos, 
ao longo do ano passado, em que o total acumulado de 12 meses dessa conta
 chegou a atingir igualmente vergonhosos R$ 540 bilhões. Ainda que sejam
 gastos da órbita federal, o governo faz cara de paisagem e ignora o assunto 
quando alguém ousa colocar o tema na mesa. Como não existe nenhuma receita
 de tributo correspondente a tal atividade, o impacto das despesas é 100% 
comprometedor do equilíbrio fiscal. No entanto, como outra “prioridade 
do governo” é a manutenção do superávit primário, não há nenhuma medida
 para contingenciar ou reduzir os gastos com a política monetária. Afinal, 
como o povo da finança enche a boca para dizer, os contratos do mercado 
são sagrados e imexíveis.

Assim, como a intenção é encontrar contas passíveis de redução na estrutura
 orçamentária, os especialistas dos cortes não hesitam em apontar o dedo para
 a previdência social. Afinal, a conta é mesmo expressiva: foram R$ 516 bi 
em 2016. No entanto, o sistema prevê receitas específicas para sua manutenção
. Assim, ainda que fiquemos submissos aos cálculos polêmicos e questionáveis
 do Ministério da Fazenda, o déficit apresentado pelo sistema no ano passado
 teria sido de R$ 108 bi. A disparidade entre ambas as contas é evidente! 
Mas o governo esqueceu juros e optou pela previdência.

Assim como a chamada “PEC do Fim do Mundo” silenciou sobre congelar
 os gastos financeiros ao longo dos próximos 20 anos, aqui também o 
financismo passa incólume - graças ao compadrio generoso dos responsáveis
 pela equipe econômica. Pouco importa o caráter redistribuidor de renda 
dos benefícios do INSS. Pouco importa que mais de 40% desse volume de
 aposentadorias e pensões retorne aos cofres públicos sob a forma de tributos
 e impostos. Pouco importa que sejam mais de 30 milhões de indivíduos
 beneficiados por esse tipo de remuneração. A prioridade é a Reforma da
 Previdência, com o intuito de retirar direitos para reduzir as despesas 
previdenciárias. E ponto final.

Juros: R$ 4 trilhões em 2 décadas.

Por outro lado, a exemplo do que vem sendo praticado há décadas, a 
prioridade é não mexer com o superávit primário. Assim, não 
interessa promover nenhuma “Reforma da Política Monetária” 
– esta sim poderia oferecer algum alívio significativo nos gastos federais. 
Nesse caso, os dados da Secretaria do Tesouro Nacional são realmente
 impressionantes. Ao longo de 2 décadas entre 1997 e 2016, por exemplo,
 o Estado brasileiro registrou um déficit acumulado de R$ 4,1 trilhões em
 sua conta de juros. Isso significa que foi esse o valor transferido do 
orçamento público para o sistema financeiro, a título de pagamento 
dos juros da dívida pública. Todos sabemos que são recursos dirigidos a
 uma pequena parcela da população e sobre os quais incide uma porcentagem
 muito reduzida de impostos, em razão da conhecida regressividade de nossa
 estrutura tributária.

Previdência social ou juros? Temer fez sua escolha e definiu sua prioridade.

Cabe à sociedade organizada demonstrar sua discordância e pressionar 
o Congresso Nacional para evitar a aprovação de tal desastre anunciado.




* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 
e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira 
do governo federal
FONTE: CARTA MAIOR
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Previdencia-Social-
ou-Juros-/7/37670

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